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Críticas e Debates

Uma aproximação ao revisionismo em Espanha: o fenómeno Pío Moa

Une approche sur le révisionnisme en Espagne: le phénomène Pío Moa
An approach to the revision in Spain: the phenomenon Pío Moa
Fernando Ampudia de Haro
p. 203-224

Resumos

O autor realiza uma aproximação ao fenómeno social do revisionismo historiográfico em Espanha relativo à Guerra Civil e à ditadura franquista. Como fenómeno social, trata-se de uma tendência que excede o próprio âmbito académico, envolvendo diferentes meios de comunicação e editoriais, núcleos de pensamento e figuras políticas. Para além da veracidade ou falsidade das teses revisionistas, é aqui tratado como um fenómeno social ligado a transformações socio-políticas operadas em Espanha, desde a chegada ao poder do Partido Popular de José María Aznar (1996) até à vitória do PSOE em 2004.

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Texto integral

  • 1 Projecto de investigação pós-doutoral intitulado O homem civilizado em Espanha e Portugal: modelos (...)

1Há já algum tempo que investigo, de forma comparativa, os modelos de comportamento e afectividade durante os períodos franquista e salazarista, em Espanha e em Portugal, numa perspectiva sociológica, assente na teoria dos processos civilizacionais de Norbert Elias1. Para o estudo da vertente espanhola, foi preciso explorar uma extensa bibliografia com o propósito de contextualizar historicamente o franquismo. Assim, tive oportunidade de aceder a um tipo de produção historiográfica que, para já e de uma forma muito geral, qualificarei como revisionista. Em termos globais, esta reproduz de modo mais ou menos sofisticado as teses clássicas da historiografia oficial franquista, elaborada pelo regime e pelas suas bases socio-intelectuais de apoio. Desde cerca 1999, o revisionismo tem gozado em Espanha de uma generosa difusão pública através de determinados meios de comunicação, atingindo os seus textos um considerável volume de vendas atestado por sucessivas e bem sucedidas reedições. No entanto, o mundo académico tem negado sistematicamente a sua validade científica, salientado o seu carácter propagandístico e ideológico. A divergência de pareceres que se observa entre o sucesso comercial do revisionismo e a nula consideração que merece por parte da Academia pode bem ser o ponto de partida que motiva a reflexão que aqui apresento.

  • 2 Lucien Febvre, Combates por la historia. Barcelona, Ariel, 1970.

2Realizo uma aproximação ao recente fenómeno revisionista em Espanha centrando a atenção nos textos do seu principal representante, Pío Moa. Para além da análise da sua dimensão historiográfica, é interpretado sociologicamente como fenómeno relacionado com mudanças nos equilíbrios de poder ocorridas no seio da sociedade espanhola. A compreensão do revisionismo espanhol não deve limitar-se à sua avaliação em termos de controvérsia intelectual no campo da historiografia. Desta forma, o fenómeno ficaria reduzido a um debate entre historiadores, que traduziria com dificuldade as suas conexões com outros aspectos que marcam o percurso e a conjuntura social e política espanholas. A tendência revisionista é mais do que uma nova edição dos já velhos, «combates pela história»2. E é-o porque representa o sintoma de um movimento mais amplo de reconstituição das mentalidades e das culturas políticas da direita espanhola. Em consequência, o fenómeno excede o âmbito historiográfico e entra no campo das representações e dos argumentos legitimadores de uma dada opção ideológica. A sua natureza socio-política converte o revisionismo num alvo privilegiado para a análise sociológica, colocando questões extraordinariamente complexas relacionadas com a cultura política dos espanhóis, com a sobrevivência nesta cultura de elementos próprios do franquismo, com a construção de culturas políticas democráticas, com a presença de novas culturas políticas conservadoras ou com a intervenção dos mass media na definição da realidade socio-política do país. Evidentemente, são questões que aqui só podem ser tratadas de forma panorâmica, tentando-se desenhar as coordenadas gerais que permitem uma compreensão global do fenómeno revisionista em Espanha. Esboçar estas coordenadas é a intenção manifesta deste texto. Sendo assim, num primeiro momento, examinar-se-á a natureza deste revisionismo, as suas principais teses e as reacções que têm suscitado no âmbito académico-profissional. Num segundo momento enquadra-se o revisionismo numa operação de conjunto mais ampla que visava, desde a primeira vitória do Partido Popular (PP) em 1996, a reconstrução, num sentido democrático, da trajectória histórica da direita espanhola. Num terceiro momento, avalia-se a hipótese da relação entre o revisionismo e diferentes dimensões da cultura política dos espanhóis. Numa secção final, apresenta-se uma reflexão sobre as eventuais consequências que, numa dupla perspectiva científica e cívica, traz consigo o fenómeno revisionista.

1. O revisionismo como revitalização historiográfica do franquismo

3A própria natureza da História como disciplina pressupõe uma revisão constante das suas contribuições graças à descoberta de fontes inéditas, à inovação metodológica ou à aplicação de novos enfoques teóricos. Sob esta perspectiva, a revisão é consubstancial à tarefa do historiador. Como tal, existem mudanças e/ou alternâncias de paradigmas que questionam os consensos científicos, provocando diferentes graus de renovação dos conhecimentos existentes numa área específica. A esse respeito, a história como actividade intelectual fica submetida à ideia de verdade como elemento progressivamente construído e, por isso, susceptível de modificação em virtude de novas contribuições teóricas e empíricas. Eis o revisionismo legítimo que abrange toda a prática científica.

  • 3 Para um estudo pormenorizado dos dados e argumentos aportados pelos autores identificados com a his (...)
  • 4 Um destes aspectos é o referido ao número de vítimas da repressão durante a guerra e o pós-guerra. (...)

4No entanto, o denominado revisionismo praticado em Espanha não se encaixa nos parâmetros deste revisionismo legítimo. Mais apropriado seria falar na revitalização das teses historiográficas do franquismo relativas à caracterização socio-política de Espanha durante os anos 30 do passado século e à institucionalização da ditadura; teses que já foram utilizadas para justificar o golpe de Estado militar contra a II República (1931-1936) em 18 de Julho de 1936, para legitimar a necessidade da Guerra Civil (1936-1939) e para consolidar os argumentos do sistema de governo autoritário que chegaria até 19753. Sendo assim, o recente revisionismo espanhol é, sobretudo, uma revitalização destas teses, as quais, desde o advento da democracia, foram relativizadas, impugnadas ou invalidadas de acordo com o seu declarado afã justificativo do franquismo e com a sua tentativa de silenciar ou desvalorizar os aspectos mais controversos da ditadura4. Mas, quais são estas teses? Sinteticamente, seria possível resumi-las do modo seguinte:

    • 5 «El nuevo régimen [la II República], precisamente, al suscitar un intenso sentimiento de esperanza (...)

    O golpe de Estado de 18 de Julho de 1936 foi um movimento militar necessário perante o carácter revolucionário da esquerda política, a qual era responsável directa pelo clima de insegurança, de instabilidade, de fragmentação social e de violência que presidiu a II República espanhola5.

    • 6 «Este libro [Los orígenes de la Guerra Civil] trata del movimiento insurreccional de octubre de 193 (...)

    A Guerra Civil foi a resposta inevitável face àquelas tendências revolucionárias dissolventes da ordem social que ameaçavam com a instauração em Espanha de um regime totalitário de esquerda. O início da guerra é fixado em 1934, motivado pelo movimento de revolução e greves – alentado por sectores socialistas, anarquistas e comunistas – juntamente com a proclamação do Estado Catalão6.

    • 7 «La historiografía deberá reconocer que aquel régimen [el Franquismo], con todas sus faltas e inclu (...)

    O franquismo é a primeira causa e o motor da modernização da Espanha contemporânea7.

    • 8 «La derecha procedente del franquismo, que no la oposición antifranquista, organizó la transición d (...)

    A democracia espanhola é uma continuidade natural e lógica da ditadura; continuidade garantida pela intervenção e pelo protagonismo durante a Transição da ala reformista do franquismo8.

    • 9 «[Durante a II República] esta condición [moderação e respeito pela lei] (…) se daba de forma predo (...)

    A tradição legal e democrática da direita política espanhola tem sido historicamente vulnerada pelo «golpismo» revolucionário da esquerda9.

  • 10 P. Aguilar Fernández, Políticas de la memoria y memorias de la política, Madrid, Alianza, 2008, pp. (...)
  • 11 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía: no fue posible el acuerdo», in S. Juliá (di (...)
  • 12 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía…», p. 106; P. Aguilar Fernández, Políticas d (...)
  • 13 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía…», pp. 112-113.

5Com efeito, estas teses que aqui enumero, são basicamente aquelas que o aparelho propagandístico e educativo do regime esgrimiu para fundamentar a sua legitimidade10. Desde o final da guerra até aproximadamente aos anos 60, a versão franquista que via na guerra a luta da «Espanha» contra a «Anti-Espanha», do «Bem» contra o «Mal», da unidade nacional contra o separatismo ou da religião contra o ateismo, configurou-se como a visão hegemónica. Como tal, a «Civilização» venceu na «Cruzada» contra a Barbárie, ilustrada na ameaça vermelha, travada pelo levantamento militar preventivo face ao golpe de estado iminente que preparavam as forças do comunismo11. Desde a década de 60, o regime vai incorporar à sua legitimidade de origem – a vitória na guerra- uma outra legitimidade baseada nas suas realizações prácticas com vista à modernização do país: as obras públicas, o aumento do nível de vida, os serviços de saúde e de educação ou o crescimento do bem-estar. Embora o discurso épico ligado à «Cruzada» nunca fosse definitivamente abandonado, começa a ser esboçada uma conceptualização da guerra como tragédia colectiva que, com a morte de Franco e o processo de transição à democracia, será reformulada como confronto fratricida: a guerra representava assim o fracaso da convivência entre os espanhóis, do qual eram todos responsáveis. Desta forma, a culpa ficava equitativamente distribuida entre vencedores e vencidos e construia-se um relato ajustado às necessidades de acordo e de reconciliação que exigia a consolidação do regime democrático12. A partir daí, durante os anos 80 e 90, a historiografia desenvolveu um consenso global em torno a três questões13:

  1. A causa imediata da guerra foi o golpe de estado dos militares rebeldes, o que provocou a divisão do exército e das forças de segurança pública.

  2. Não existia nenhuma evidência sólida e comprovável do suposto golpe de estado comunista que o franquismo disse ter anulado.

  3. A pesquisa científica devia orientar-se à procura das causas da guerra, e não às suas culpas.

6Não obstante, no final dos anos 90, a mudança generacional e os quase trinta anos passados da Transição, fizeram com que se manifestassem diferentes recusas e impugnações do relato da responsabilidade colectiva: como ficção moral foi útil na passagem à democracia, mas agora parecia encubrir uma injustiça histórica que desculpava os autênticos responsáveis em nome da culpabilidade de todos. Neste ponto emergem os textos de Pío Moa numa direcção oposta a essa recusa ou impugnação. Moa regressa à questão da culpa. À pergunta «quem é que começou?» oferece uma resposta unívoca: tanto a esquerda, em 1934, através da greve revolucionária das Astúrias como as forças nacionalistas com a tentativa de proclamação da independência da Catalunha. O autor retoma os postulados básicos das teses franquistas justificando a legitimidade do regime em virtude da:

  1. desordem social e da ameaça revolucionária vividas durante a II República. O perigo de uma revolução substitui na análise de Moa o argumento tradicional do franquismo que remetia à iminência de um golpe de estado comunista;

  2. pacificação da sociedade e do aumento global do nível de vida da população.

  • 14 Moa é certamente um autor prolífico: nos registos da Agência Espanhola do ISBN figuram pelo menos 1 (...)
  • 15 S. Balfour, «The concept of historical revisionism: Spain since the 1930s», International Journal o (...)

7Com maior ou menor nível de formalização, os argumentos revisionistas enquanto revitalização das velhas teses franquistas, voltaram a surgir em diferentes publicações de inegável sucesso editorial14. Esse sucesso parece estar sustentado pela popularidade do revisionismo em certos sectores conservadores da sociedade espanhola entre os quais se pode encontrar o seu leitor-tipo15: famílias favoráveis ao golpe militar de 18 de Julho, que usufruiram dos privilégios outorgados aos vencedores e que, activa ou passivamente, apoiaram a ditadura; famílias que reactivam hoje a sua admiração pelos avós, tios, pais ou conhecidos que perderam o seu reconhecimento social com a institucionalização da democracia. O revisionismo chega, pois, a este leitor-tipo para restituir uma certa respetabilidade às biografias familiares da direita espanhola.

8O êxito comercial e a difusão das obras de Moa são duas importantes razões que explicariam a ressonância pública das teses revisionistas no campo da historiografia profissional. A reacção da Academia face a esta ressonância tem sido, principalmente, de dois tipos:

    • 16 A. Elorza, «Vuelve el 36», El País, 17/9/2005, p. 21. Uma outra denominação, proposta ironicamente (...)
    • 17 S. Gálvez, «Memorias, historia, derechos humanos, políticas públicas: reflexiones en torno a la prá (...)
    • 18 «Los dos libros anteriores [Los orígenes de la Guerra Civil e Los personajes de la República vistos (...)
    • 19 Numa entrevista no jornal El Mundo (9/04/2003), Pío Moa é inquirido sobre os historiadores que o ap (...)
    • 20 Embora o debate não tenha apresentado um formato público formal, é preciso reconhecer que têm exist (...)

    A negação do debate no que equivale às teses revisionistas em função do seu carácter não profissional e não científico. Em muitos sentidos, situamo-nos perante uma reacção corporativa segundo a qual a inclusão do historiador nos meios científicos institucionalizados reconhecidos como tais – universidades, institutos, centros de investigação... – através das suas credenciais literárias seria o critério que permitiria estabelecer a distinção entre «práticas historiográficas profissionais» e «práticas historiográficas amadoras». Por outras palavras, não há debate quando o interlocutor não é estritamente um historiador avalizado por diplomas universitários, por publicações relevantes nas principais revistas da disciplina ou por contribuições em eventos científicos assinaláveis. Como afirma ilustrativamente Antonio Elorza, «no se polemiza con un panfletario»16. Em definitivo, não existe o reconhecimento por parte dos hipotéticos pares17. Uma reacção deste cariz tem contribuido para alimentar a vitimização de Pío Moa18. Em geral, salienta que a Academia silencia, nega, esquece, desatende ou mesmo proíbe os seus argumentos. O silêncio, a negação, o esquecimento, a desatenção ou a censura explicar-se-iam, segundo o revisionismo, pela tradicional endogamia universitária que impede a renovação dos seus quadros, pela defesa de interesses particulares e, sobretudo, pelo medo da perda do controlo sobre os instrumentos de inculcação doutrinária detidos por certos historiadores que actuam como professores universitários e defendem visões marxistas ou marxizantes da história contemporânea espanhola19. Portanto, aceitar o debate, provocaria o debilitamento da hegemonia da esquerda no âmbito académico20.

    • 21 Um exemplo deste tipo de crítica é F. Espinosa, El fenómeno revisionista o los fantasmas de la dere (...)

    A análise crítica das teses revisionistas e dos argumentos que as suportam. De acordo com esta análise, os textos identificados com o revisionismo apresentam notáveis insuficiências metodológicas, uma carência de documentação primária considerada imprescindível, práticas abusivas na citação unilateral de apenas um tipo de fonte, uma ignorância intencionada de bibliografia secundária básica, um emprego interessado e parcial dos documentos e uma alarmante falha no que diz respeito à actualização bibliográfica21. Como tal, estas deficiências são responsáveis pela falta de cientificidade das teses revisionistas, circunstância que acaba por reduzi-las à simples agitação propagandística.

9Se, como já avancei, limitarmos o fenómeno revisionista à estrita polémica historiográfica, perderíamos muitos elementos de juízo que nos permitiriam avaliar adequadamente tal fenómeno. O facto é que esta polémica não deve ser interpretada como um dado isolado, e sim como uma das possíveis manifestações de um processo todavia mais alargado de mudança no equilíbrio de poder da sociedade espanhola por ocasião da vitória do PP nas eleições gerais do ano 1996 e, de maneira mais acentuada, a partir da sua maioria absoluta em 2000. Existe uma ligação entre a revitalização historiográfica do franquismo e o advento do PP ao poder; uma ligação que não é causal nem mecânica, mas sim passível de ser sociologicamente explicada.

2. Um novo equilíbrio de poder: as vitórias do PP

  • 22 O conceito equilíbrio de poder refere-se às específicas condições de interdependência que existem e (...)
  • 23 J. Muñoz, «Sin complejos: las nuevas derechas españolas y sus intelectuales», Historia y Política, (...)

10Após o domínio eleitoral do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) desde 1982, o ano de 1996 confirma o acesso ao poder do PP, que consolida o seu mandato atingindo em 2000 a maioria absoluta no parlamento. Espanha viveu assim uma re-organização do seu mapa político logo a seguir aos 14 anos do poder socialista. Configurou-se um novo equilíbrio de poder que trouxe associadas valorizações e representações mentais específicas ligadas a esta mudança por parte dos grupos sociais favoráveis ao novo equilíbrio, ou, identificados ideológica e afectivamente com o PP22. O novo equilíbrio aparece relacionado com um movimento intelectual e cultural que, num sentido lato, visava revigorar uma atitude de cariz liberal-conservador mobilizando para tal diferentes recursos retórico-ideológicos23. Tal movimento pretendia a reconstrução da trajectória histórica da direita política espanhola como um meio de obtenção de uma legitimidade acrescentada à já conferida pelo voto e pela vitória eleitoral. Este exercício de reconstrução implicava a elaboração de uma história da direita espanhola capaz de conectar o presente com o passado de modo coerente, incidindo na sua vertente democrática, negociadora e moderada. Tratava-se de uma operação em prol de um plus de legitimidade vinculado à descrição dessa trajectória assim como de uma tentativa de rearmamento ideológico e doutrinal. A esse respeito, a legitimidade derivada de um impecável percurso histórico rastreou-se na Restauração e no Canovismo, na figura de Manuel Azaña durante a II República e no legado da União de Centro Democrático (UCD) na fase da transição para a democracia. Não obstante, a operação tornava-se extremamente complicada no que concerne ao período histórico da Guerra Civil e da ditadura franquista; um período que viu a direita participar em concepções, cosmovisões e mentalidades autoritárias, intolerantes, repressivas e notoriamente reaccionárias. Semelhantes dificuldades foram resolvidas mais com o recurso à caracterização negativa da esquerda do que mediante a análise crítica da actuação da direita política no referido período. Nomeadamente, salientaram-se as condutas anti-democráticas dessa esquerda na II República, os seus vínculos com o estalinismo soviético, os seus planos para a implantação de sistemas socialistas em Espanha ou os seus laços com o terrorismo de ETA nos anos 60 e 70. A ênfase na tradição anti-democrática da esquerda espanhola constituiu um veículo preferencial para afirmar a auto-definição democrática da direita: se o opositor não era democrata, então seria a direita a representar a autêntica linha da democracia espanhola.

  • 24 As seguintes palavras de Pío Moa resumem esta ideia: «Así, tan pronto las izquierdas perdieron el p (...)
  • 25 Sirvam como exemplo estas afirmações de Pío Moa: «No existe hoy ningún partido de izquierda que apo (...)
  • 26 A ligação entre o passado e o presente permite identificar a potencial ameaça da esquerda sobre a s (...)

11É este contexto que cria as condições de possibilidade para a emergência das teses revisionistas. Falar em condições de possibilidade exclui uma leitura determinista que ligue causalmente a presença do PP no poder ao revisionismo. O que se pretende pôr a nu é que a reanimação/revivificação de mentalidades liberais-conservadoras, a reconstrução de trajetórias políticas «sem mancha» e a procura de legitimidades históricas adicionais são o substrato a partir do qual operam as teses revisionistas. Neste sentido, as peças pareciam encaixar quando José María Aznar declarava, no início do seu descanso estival em Agosto de 2003, que uma das leituras que levava consigo nessas férias era Los Mitos de la Guerra Civil de Pío Moa, o autor que melhor encarna com a sua obra a revitalização das velhas teses da historiografia franquista. Como facto pontual, é sintomático da articulação que se observa entre o referido substrato e a renovada presença do revisionismo historiográfico no espaço público. Em todo o caso, a assunção destas teses ou a atenção que se lhes presta não nasce tanto da sua consideração em termos historiográficos, como da sua utilização enquanto ferramenta retórica ao serviço da liça política. Deste modo, os supostos teóricos revisionistas, unindo o passado e o presente históricos, fixariam uma continuidade ideológica entre a esquerda política política dos anos 30 e a actual esquerda política espanhola. De acordo com esta continuidade no comportamento, nas atitudes, nas práticas e na ideologia sería factível afirmar que a) a esquerda espanhola está historicamente vinculada ao fomento da instabilidade social24 e b) a esquerda espanhola, substancialmente, não possui uma autêntica trajectória política democrática25. Independentemente do seu valor historiográfico, as teses revisionistas são empregues como meio de des-legitimação do competidor político em virtude do seu passado revolucionário e desestabilizador. É a ligação passado-presente que permite argumentar que a essência da esquerda não mudou desde os anos 30, facto que conduz à fixação de uma dicotomia direita-esquerda que nega a eventualidade da mudança ideológica, mental e comportamental; uma dicotomia em função da qual elaborar uma analogia entre a Espanha dos 30 e a Espanha dos 80 e 90, incluindo, por extensão, a Espanha de 2004 até hoje; isto é, uma analogia focada naqueles períodos históricos em que a esquerda manteve uma notável presença, quer no poder, quer ao nível do protagonismo político26. Em síntese, o revisionismo conta como recurso retórico-ideológico próprio do confronto político, cumprindo ora uma função des-legitimadora da esquerda, ora uma função legitimadora da direita.

3. Revisionismo, cultura política e movimentos reactivos

  • 27 De acordo com S. Giner, E. Lamo de Espinosa e C. Torres (eds.), Diccionario de Sociología, Madrid, (...)

12A recusa do revisionismo por parte da Academia não impede que as suas teses funcionem socialmente como geradoras de realidade e de verdade e que, por isso, influam sobre as mentalidades e condicionem comportamentos: a demostração científica da sua insuficiência ou mesmo da sua falsidade, não obstaculizam definitivamente o seu uso como ferramenta de legitimação ou des-legitimação ideológica. São teses socialmente válidas na medida em que servem para configurar imaginários políticos, para articular uma linguagem pública e para interpretar a realidade socio-política espanhola; teses que podem ser analisadas em relação à própia cultura política dos espanhóis27. Desta forma, acedemos à dimensão estritamente sociológica da questão, cuja abordagem vai articular-se segundo a tentativa de resposta que oferecerei a uma tripla pergunta que formulo em seguida.

13Existe em Espanha alguma sub-cultura política específica, de recente introdução ou de nova reformulação, vinculada às teses revisionistas? Ou dito de um outro modo, o revisionismo tem relação com algum fenómeno político novo em Espanha?

  • 28 A este respeito, resulta imprescindível a consulta de P. C. González Cuevas, Historia de las derech (...)
  • 29 Uma enumeração mais sistemática assim como uma classificação segundo variantes ideológicas pode con (...)
  • 30 E.Rodrígues e H. Arbide, «¿Nueva derecha? O la reivención del populismo frente al vacío de la izqui (...)

14A revitalização do franquismo relaciona-se com o aparecimento e o fortalecimento de um corpus de ideias afim de um pensamento neo-conservador essencialmente importado dos Estados Unidos e reformulado para que se adapte à conjuntura espanhola, o qual ganha uma presença progressiva desde a vitória do PP em 1996, vive um momento de pujança com a maioria absoluta deste partido no ano 2000, e actua como réplica aos triunfos do PSOE em 2004 e 2008. Este pensamento neo-conservador afasta-se das correntes tradicionais do conservadorismo espanhol contemporâneo, comummente representados pela extrema-direita de inspiração falangista, pelo tradicionalismo católico ou pela democracia cristã28. Assim, esta pretensão de novidade explica a utilização do prefixo «neo» ou a sua denominação global como nova direita29. Mas, quais são as caraterísticas principais deste neoconservadorismo? Uma aproximação geral conduz-nos à análise de dois elementos constitutivos especialmente pertinentes para a questão que aqui nos ocupa30:

    • 31 O Grupo de Estudios Estratégicos sintetiza esta visão no seu artigo «La receta neocon», Libertad Di (...)

    Visão moral da vida política, social e cultural. Num mundo ameaçado por riscos globais e forças amorais concretizados no terrorismo, na destruição da família, na proliferação do aborto, no avanço da imigração, na duvidosa concessão de direitos às minorias identitárias, na persistência dos nacionalismos desintegradores ou no questionamento da ordem social, é preciso, mais do que nunca, a afirmação de categorias morais substantivas e inegociáveis face ao relativismo dominante nas sociedades contemporâneas31.

    • 32 Podemos encontrar um exemplo desta crítica num novo artigo do GEES entitulado «La sociedad contra s (...)

    Atribuição à esquerda da desarticulação moral da sociedade com base na sua defesa de movimentos sociais de classe, identidade e género assim como ao seu fomento de valores contra-culturais. A crítica da esquerda arranca desde Maio de 1968 e concentra-se, com mais força e em Espanha, nos governos socialistas dos 80 e 90 chegando até à actualidade após o retorno do PSOE ao poder no ano de 200432.

  • 33 Pío Moa, agora na sua vertente de comentador político, estabelece essa relação através do conceito (...)
  • 34 Angel Acebes, ex-ministro da Administração Interna e Secretário Geral do PP, afirmava, segundo o jo (...)
  • 35 José Maria Aznar, primeiro-ministro entre 1996 e 2004, afirmava, segundo El País (7/10/2005), por o (...)
  • 36 O porta-voz de Educação do PP no Congreso dos Deputados, Eugenio Nasarre, afirmava que a disciplina (...)
  • 37 Federico Jiménez Losantos qualificava a vitória do PSOE em 2000 como «golpe de Estado político-medi (...)
  • 38 No jornal Libertad Digital, José Luis Restán expressava-se assim: «Días de furia. Vuelan los insult (...)
  • 39 Aznar, segundo El Periódico (6/5/2007), acusava Zapatero, propósito da proposta socialista sobre a (...)

15A vaga neo-conservadora define um marco possível de actuação para as teses revisionistas como mais um instrumento de des-legitimação e crítica da esquerda política. A historiografia revisionista outorgaria validade científica à analogia entre a Espanha dos 30 e a Espanha socialista dos 80 e 90, novamente reeditada em 2004. Se aquela Espanha da 2.ª República caiu, a actual encontrar-se-ia à beira do colapso devido à lassidão moral reinante – lei de casamento de pessoas do mesmo sexo –, à ofensiva contra a Igreja católica – ameaças de revisão da Concordata, eliminação da religião do ensino secundário –, à promoção do separatismo – coligações com partidos nacionalistas ou independentistas – ou à tomada ilegal e conspirativa do poder – supostas ligações do PSOE com o islamismo terrorista nos atentados do 11-M em Madrid33 e afinidades políticas entre o PSOE e a organização terrorista ETA34. A teórica cientificidade das teses revisionistas possibilita a construção de uma ponte intemporal entre o passado e o presente, circunstância esta que permitiria falar, como já conteceu na legislatura 2004-2008, na «ruptura de Espanha»35, no «doutrinamento socialista nas escolas»36, no «golpe de Estado da esquerda»37, no «ataque à Igreja católica»38 ou no «desforrismo (clima de desforra)» a propósito da Lei da Memória Histórica39.

  • 40 Ideia apontada em J. Izquierdo Martín e P. Sánchez León, La guerra que nos han contado.1936 y nosot (...)

16O sucesso editorial e mediático do revisionismo permite afimar a persistência de uma matriz pós-franquista na cultura política dos espanhóis?40 Ou dito de um outro modo, o revisionismo é a manifestação de um fenómeno político mais antigo relacionado com a ditadura vigente durante cerca de 40 anos?

  • 41 S. Juliá, «Los cambios estructurales de la sociedad en la etapa final de las dictaduras. El caso es (...)
  • 42 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia de los medios de comunicación e la forma (...)
  • 43 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra y del franquismo en la política, la cultura y la s (...)
  • 44 Idem, ibidem.

17Neste ponto a resposta nem é fácil nem é simples. Em Espanha, a cultura política democrática começou a construir-se já durante a ditadura41 e diferentes estudos têm advertido para a existência de elementos de continuidade entre padrões autoritários e democráticos na sua formação42. Com frequência são salientadas certas dimensões que revelariam o sucesso da socialização política do franquismo, não em termos da aquisição de um sistema ideológico sistematizado assumido pela maior parte da população, mas sim como pautas mentais gerais e difusas relativas à orientação e à interpretação da realidade socio-política espanhola. Entre estas pautas figurariam o medo face à desordem social, a relativa desconfiança perante as capacidades dos espanhóis de resolverem pacífica e civilizadamente os seus conflitos, o temor das consequências imprevistas da liberdade política ou o receio da repetição de uma guerra43. A cultura política dos espanhóis assentaria, primordialmente, em valores como a paz, a estabilidade ou a ordem, apresentando uma valorização secundária de conteúdos como a liberdade, a justiça ou, mesmo, a própria democracia. Conclusões desta ordem baseiam-se em estudos ainda próximos cronologicamente do final da ditadura, embora inquéritos bem mais recentes mostrem resultados relativamente coerentes com tais conclusões. Em 1991, num estudo de opinião e atitudes realizado pelo Centro de Investigaciones sobre la Realidad Social (CIRES) era possível observar estes valores44:

    • 68% dos entrevistados entendiam que era melhor esquecer a guerra do que falar sobre ela.

    • 75% dos entrevistados desejava que a guerra não se voltasse a repetir.

    • 66% dos entrevistados julgava que os dois lados foram igualmente culpados de atrocidades múltiplas.

  • 45 Idem, p. 301.

18Em 2000, num estudo do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS), os resultados ainda revelavam continuidades com estudos anteriores45:

    • 51% dos entrevistados pensava que não foram esquecidas, 25 anos depois, as divisões e os rancores do passado.

    • 67% dos entrevistados opinava que ainda era visível na sociedade espanhola a herança do franquismo

    • 46.4% dos entrevistados afirmava que o franquismo teve elementos tanto positivos como negativos.

  • 46 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia…», pp. 44-45.
  • 47 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra…», p. 301.

19Outro conceito empregue para caracterizar a cultura política dos espanhóis, o «cinismo político», também tem merecido explicações focadas no peso da ditadura. Segundo esta expressão, o dito cinismo refere-se à elevada legitimidade que os espanhóis concedem à democracia como forma de governo, e à baixa eficácia que atribuem aos partidos políticos. Esta divergência responderia à carência de uma tradição civil associativa anulada pelo franquismo, e ao escasso interesse pela política como legado da ditadura46. Por último, e neste mesmo sentido, é necessário salientar a alta pontuação que, em valores como a ordem e a moderação, alcança Espanha no Inquérito Mundial de Valores ou nas séries estatísticas do Eurostat47.

  • 48 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia…», p. 45.
  • 49 Para uma aproximação a estas questões: A. Pérez Agote, La sociedad y lo social. Ensayos de sociolog (...)
  • 50 Pío Moa traça no seguinte fragmento um quadro histórico que liga a ditadura, como base do actual si (...)
  • 51 Antes da promulgação da lei teve lugar uma manifestação em Madrid convocada pelo Fórum da Família, (...)
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20Não tenciono com estes dados fazer uma caraterização definitiva da cultura política dos espanhóis que, sem dúvida, inclui outros elementos não relacionados com o autoritarismo franquista e sim mais vinculados, por exemplo, com a apatia geral dos cidadãos detectável habitualmente no funcionamento de sistemas democráticos estáveis sem antecedentes ditatoriais48. No entanto, não julgo ser desacertado apontar, com reserva e cautela, a existência de atitudes e padrões valorativos da vida social e política relacionados com uma cultura política autoritária, nomeadamente, atitudes e padrões ordeiros e defensores da estabilidade como valor moral que deve presidir ao conjunto das relações sociais. Tais atitudes e padrões manifestam-se de maneira mais visível quando, em função das conjunturas, são lançadas pelos actores sociais definições da realidade socio-política que a caraterizam em termos de desordem e de fragmentação. Situamo-nos perante categorizações cuja eficácia se revela de acordo com a sua capacidade para influir no comportamento e nas opiniões de outros actores
sociais49. As definições sociais em termos de desordem e fragmentação social regressaram de forma evidente à esfera pública espanhola coincidindo com a vitória eleitoral do PSOE nas eleições de 200450. A desordem foi identificada por analistas e meios de comunicação conservadores ou neo-conservadores, assim como por sectores da direita política espanhola com determinadas iniciativas legais – casamentos gays51, divórcio «Express»52, memória histórica – e governativas – diálogo com ETA53, retirada das tropas do Iraque, mal-estar da administração dos Estados Unidos com Espanha, política territorial pactuada com partidos nacionalistas ou independentistas54 – que privilegiaram, como elementos de avaliação e definição da situação, noções relativas à desordem, à instabilidade e à desunião, gerando, deste modo, uma valorização negativa da nova conjuntura política. De novo as teses revisionistas proporcionaram o material supostamente científico que permitiria recuperar uma interpretação segundo os valores de ordem, estabilidade e progresso em contraposição às veleidades revolucionárias e desestabilizadoras da esquerda. Outra vez surge a analogia entre o comportamento da direita e da esquerda no passado, e a actuação destes mesmos protagonistas na actualidade; ou seja, a contraposição atemporal entre a estabilidade e a desordem. O revisionismo desempenha aqui uma função meta-historiográfica comportando-se como um recurso disponível para avaliar e definir a realidade socio-política e questionar, total ou parcialmente, a legitimidade da esquerda espanhola. Em todo o caso, é imperativo evitar qualquer leitura interpretativa desde fenómeno em termos de causa-efeito. Nem a revitalização das teses franquistas cria por si própria uma cultura política neo-franquista, nem os elementos herdados da ditadura conduzem inevitavelmente à necessária re-actualização destas teses. As sub-culturas políticas ordeiras e autoritárias e o revisionismo alimentam-se mutuamente sendo, alternadamente, causa e consequência, e desenvolvem a sua inter-relação num contexto socio-político que oferece oportunidades para esse desenvolvimento.

21A revitalização das teses franquistas é devida a uma tendência reactiva face às iniciativas des-legimitadoras da direita empreendidas desde posições de esquerda? Ou dito de um outro modo, é uma resposta lógica e prevista a um ataque inicial da esquerda?

  • 55 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra y del franquismo…», p. 283.

22O revisionismo também é passível de ser interpretado como um movimento reactivo, isto é, como uma contestação em termos análogos às operações deslegitimadoras da direita efectuadas a partir de posições de esquerda. Gera-se, pois, uma dinâmica de acção-reacção numa complexa partida à volta da legitimidade histórica de determinadas tradições políticas. Perceber esta dinâmica obriga-nos a regressar ao pacto originário fundador da democracia espanhola, subscrito pelas elites políticas e, em grande medida, pelas suas bases sociais de apoio. O referido pacto apresenta três dimensões que resultam fundamentais em relação à questão que aqui tratamos55:

    • O pacto supunha o compromisso tácito de não instrumentalizar o passado, quer o relativo à guerra civil, quer o relativo à ditadura.

    • O pacto estabelecia o imperativo da não repetição da guerra como via para a resolução dos conflitos sociais e políticos.

    • O pacto eliminava a possibilidade de julgamento, mediante tribunais constituídos para o ao efeito, das vulnerações dos direitos humanos durante o período franquista.

  • 56 Idem, p. 305.
  • 57 Já nos primeiros meses de 1979 existiram recordações do passado franquista dos membros do governo o (...)
  • 58 S. Juliá, «Los cambios estructurales de la sociedad en la etapa final de las dictaduras. El caso es (...)
  • 59 Esperanza Aguirre, Presidente da Comunidade Autónoma de Madrid e dirigente destacada do PP, afirma (...)
  • 60 O primeiro-ministro Zapatero referiu-se à II República como uma época de «sonhos e lágrimas» e à Co (...)

23Embora este pacto fosse assimétrico e obrigasse a esquerda a inúmeras concessões e renúncias, o certo é que, enquanto acordo original e fundador, serviu para construir ou fortalecer uma cultura política democrática que via na Transição um modelo exemplar de mudança política; uma maneira positiva e civilizada de caminhar do autoritarismo para a democracia. Como pacto, e além da sua dimensão formalmente política, é também um constructo cultural que contribuiu para a consolidação do convívio pacífico entre os cidadãos. Apesar disso, existiram tentações de vulneração e vulnerações de facto do pacto relativamente à não instrumentalização do passado. Na campanha eleitoral de 1993, o PSOE, sob a pressão de uma hipotética perda de votos que comprometesse a renovação do seu mandato, introduziu no seu discurso e na sua propaganda elementos que punham em questão o acordo de não instrumentalização do passado. Em consequência, relembrou-se o pecado original do PP, ou seja, a pertença de muitos dos seus mais significativos dirigentes aos quadros políticos do franquismo. Paralelamente, jogou-se a vaza do medo ao retorno da direita, associada a tendências autoritárias que desmantelariam os logros sociais alcançados pelos governos socialistas desde 1982. Em definitivo, questionava-se o pedigree democrático da direita e, paralelamente, reafirmava-se a tradição democrática da esquerda com recurso à sua oposição à ditadura. A verdade é que o passado referido ao franquismo foi usado com anterioridade a 1993 mas, como aponta Aguilar56, nunca com tanta intensidade como na campanha eleitoral daquele ano57. Se, como já afirmei, a direita tem dificuldades na reconstrução de uma tradição histórica assente na defesa da democracia, não é menos certo que a identificação do anti-franquismo com a luta pela liberdade subtrai do debate um dado importante: a oposição ao franquismo desde a esquerda albergava também projectos não estritamente democráticos, ou se se quer, nem todo o anti-franquismo de esquerda foi democrático nas suas propostas. Existe uma distorção pars pro toto, isto é, uma identificação global do anti-franquismo como movimento de cariz democrático a partir apenas dos grupos que apostaram numa democracia de tipo representativo, esquecendo que no seio do anti-franquismo existiram propostas nitidamente duvidosas ou contrárias à democracia liberal identificadas com o maoísmo, o marxismo radical ou o terrorismo revolucionário58. De um modo evidente, e já a partir da maioria absoluta do PP em 2000, multiplicaram-se as iniciativas parlamentares impulsionadas pela esquerda relativas à recuperação da memória histórica, à reabilitação moral e económica das vítimas da repressão da ditadura, à condenação explícita do golpe de estado de 18 de Julho de 1936 e à recusa global do regime franquista. Reactivaram-se as críticas ao PP enfatizando a sua não desvinculação com o franquismo, enquanto que esta última formação política conceptualizava tais iniciativas em termos de agitação interesseira, de movimento de desforra ou de subversão do espírito da Transição. Tendo em conta isto, é necessário salientar que a esquerda também se valeu de retóricas e procedimentos de des-legitimação baseados no passado da direita espanhola, procedimento que bem pode alimentar a reacção por parte dessa direita num sentido oposto. A esse respeito, o revisionismo cumpre a função de defesa reactiva face à des-legitimização da direita empreendida pela esquerda. E mais: como é sabido, as teses revisionistas têm servido reactivamente para desacreditar especialmente o período republicano que mediou entre 1931 e 193659; período este muitas vezes reivindicado pela esquerda política como antecedente básico da actual democracia espanhola num tom amiúde simplificador que vê na II República um sistema político depositário de virtudes cívico-democráticas em grau supremo60. Tende-se assim, agora desde a esquerda, a estabelecer uma nova ponte intemporal que ligaria os anos 30 e a democracia espanhola de hoje. Em termos gerais, o debate político sobre o passado histórico em Espanha tem evoluído de maneira muito viva embora numa direcção frequentemente simplificadora e reducionista. O reduccionismo e a simplificação articulam-se em torno de dois tropos argumentativos:

  • Quem é que disparou primeiro? Numa espiral retroactiva, trata-se de encontrar no passado o momento, o fenómeno ou a actuação de um grupo político e das suas bases sociais de apoio que provocariam a necessária reacção do grupo opositor. Determinar quem é que iniciou as hostilidades, quem é que agiu como provocador e quem é que reagiu em defesa própria possibilitaria marcar um ponto-zero da história de Espanha que definisse culpabilidades e inocências: a culpa de quem ataca e a inocência de quem se defende. Obviamente, esta dinâmica está inevitavelmente condenada, pela sua lógica, a um processo ad infinitum à procura da culpa primigénia.

  • E tu também. A afirmação da trajectória democrática de um grupo político tem conduzido, explícita ou implicitamente, à des-legitimação do opositor mediante o questionamento ou a negação do seu substrato democrático. Desfraldam-se argumentos e factos que supostamente exemplificariam a carência deste substrato perante os quais se contrapõem razões equivalentes como réplica. Assim, se uns foram anti-democráticos, os outros também o foram. A lógica do tuo quoque também está condenada a nutrir uma cascata sem fim de acusações recíprocas.

4. Conclusão

24Como argumentei até aqui, o revisionismo é mais do que um fenómeno editorial ou historiográfico. Em si, constitui um interessante objecto de estudo sociológico que, portanto, vai além dos limites da Academia. Fundamentalmente, é uma ferramenta de legitimação-des-legitimação conforme a uma leitura interpretativa do passado revestida de cientificidade – e por isso, portadora de uma hipotética verdade e objectividade- que estabelece uma continuidade temporal entre as atitudes, as mentalidades e os comportamentos dos grupos políticos do passado e dos actuais. O revisionismo opera num nível duplo.

25Como recurso de des-legitimação da esquerda advertindo uma essência trans-histórica que a converte num instrumento ligado à desordem, à instabilidade, à fragmentação e à dissolução da sociedade.

26Como recurso de legitimação da direita política. Esta legitimação não provém estritamente da aceitação sistemática e total de um corpus doutrinário franquista senão da própria des-legitimação historiográfica da esquerda, facto que, ao mesmo tempo, significaria a legitimação implícita na direita de um percurso exemplarmente democrático.

27Na realidade, se se tratasse unicamente de um caso de controvérsia intelectual, é legítimo pensar que seria suficiente contestar o revisonismo com a invalidação das suas teses em nome de uma carência de cientificidade. Nomeadamente, é esta uma resposta na qual a Academia e os profissionais da história insistem desde há tempo. Mas acontece que, apesar da ampla unanimidade académica, os produtos culturais revisionistas – livros, seminários, artigos, conferências, congressos – continuam a gozar de um elevado grau de aceitação entre sectores alargados da população espanhola. Deste modo, parece razoável procurar algumas das causas desta aceitação fora do campo historiográfico, interpretando o revisionismo como um fenómeno social vinculado: à introdução de novos padrões nas culturas políticas da direita liberal-conservadora que enfatizam a inviabilidade dos projectos políticos da esquerda; à persistência de elementos relativos a uma matriz pós-franquista dentro da cultura política dos espanhóis; e a uma dinâmica de acção-reacção no confronto político que inclui a tentativa de instrumentalizar políticamente o passado do país.

  • 61 A. Reig Tapia, Anti-Moa..., pp. 370-375.

28As consequências do revisionismo são de dois tipos. Por um lado, as que poderíamos chamar consequências científicas, pois as teses revisionistas promovem um conhecimento extremamente duvidoso em termos de rigor e veracidade. Pelo outro lado, as que denomino consequências cívicas, pois estas teses corroem e depreciam a construção de uma cultura política democrática em Espanha. No que equivale às consequências científicas, uma questão apresenta-se como prioritária: como deve lidar a historiografia profissional com a historiografia revisionista, à qual retira todo o estatuto científico? O debate científico pressupõe que os enfoques e as interpretações debatidas cumpram requisitos prévios relativos às regras do procedimento científico assim como, que a sua exposição, defesa, análise e crítica sejam realizadas publicamente de acordo com argumentos lógicos e racionais. Se não fôr deste modo, o que temos é um hipotético debate entre a historiografia científica e uma outra disciplina pseudo-historiográfica; um hipotético debate no qual, o ponto de partida, é radicalmente diferente. Mas, mesmo retirando o estatuto de cientificidade ao revisionismo, o essencial do problema continua em aberto. Não é suficiente negar o seu carácter centífico se, em contrapartida, não se oferece nada em troca. Se a historiografia profissional e os seus representantes consideram que estão a ser transmitidos à sociedade conhecimentos falsos ou pouco fidedignos, seria necesário inverter esta tendência fornecendo a essa mesma sociedade conhecimentos mais rigorosos, ajustados e adequados. Uma saída factível é o recurso à divulgação61; ou seja, a acessibilidade para o público não especialista das investigações mais recentes, das novas descobertas e dos enfoques empregues. Em definitivo, pôr à disposição do público em geral, de uma maneira argumentada, perceptível e compreensível, o saber tido por rigoroso ou com fundamento científico. A divulgação histórica já existe mas o sucesso do revisionismo talvez exigisse redobrar os esforços. Mesmo assim, a divulgação, embora necessária, está ainda longe de ser uma solução completa por si própria. É simplificador pensar que bastariam vendas superiores e continuadas de obras de divulgação histórica comparativamente às obras revisionistas para ter a certeza de que um saber científico e veraz sobre a Guerra Civil e o Franquismo seria assumido por amplas camadas da população. Não é suficiente confiar exclusivamente numa iniciativa de natureza editorial: a ninguém lhe escapa que continuarão existindo compradores e leitores refractários à divulgação histórica construída segundo coordenadas científicas: nem todo o público é permeável à divulgação. Esta impermeabilidade já não seria imputável à ausência no mercado de textos adequados de divulgação histórica, e teria mais a ver com a existência de sub-culturas políticas para as quais as teses revisionistas resultam atractivas. Entramos, assim, no terreno das consequências cívicas do revisionismo.

  • 62 Resulta exemplar o livro de J. Izquierdo Martín e P. Sánchez León, La guerra que nos han contado…, (...)

29Que as teses revisionistas sejam editorial, mediática e politicamente tão atractivas é um facto que nos fala sobre as debilidades ou as erosões da cultura política democrática dos espanhóis, uma vez que aquelas teses mostram afinidades significativas com mentalidades e cosmovisões autoritárias. Neste aspecto, as teses revisionistas desacreditam e depreciam a longo prazo a construção de uma cultura política democrática de qualidade. Que fazer, é pois, a pergunta. Ao falar de iniciativas, pensa-se quase obrigatoriamente, na responsabilidade dos poderes públicos na transmissão de conhecimentos capazes de espalhar essa cultura política democrática. No entanto, a responsabilidade não é exclusiva do Estado. A configuração de uma cultura e de um imaginário político democráticos também compete aos própios partidos: as suas actuações, as suas trajectórias e o seu passado jogam um papel vital nessa conformação. A vida política espanhola tem vivido recentemente um conjunto de polémicas à volta do passado histórico. Escapar das dinâmicas que essas polémicas geram exige o desenvolvimento de uma predisposição crítica relativamente à reconstrução das trajectórias partidárias utilizadas como meio para reafirmar a sua substância democrática62. Isto não implica a equidistância; não implica uma salomónica repartição de responsabilidades senão um exercício crítico racional, constrastado e debatido publicamente como requisito para a construção de uma cultura política democrática de qualidade. Mas, como é que se relaciona esta predisposição crítica com o jogo partidário da des-legitimação do oponente político?

  • 63 Esta dicotomia identificação-des-identificação é analisada por Norbert Elias tomando como referênci (...)
  • 64 Richard Rorty, Achieving our Country: Leftish Thought in Twentieth-century America, Harvard Univers (...)
  • 65 As palavras de Paloma Aguilar são uma boa prova: «[…] el acuerdo de no instrumentalización del pasa (...)

30O passado histórico tem sido, em Espanha, um recurso para avaliar a trajectória dos partidos políticos e a consistência das suas posições ideológicas. A atribuição ao oponente político de características des-legitimadoras em virtude desse passado tem servido para afirmar o orgulho e a convição de pertencer ou se identificar com uma dada opção ideológica. Conforme era rebaixada e diminuída a imagem do oponente, parecia incrementar-se o orgulho de se saber situado na posição política certa63. Mas o reverso do orgulho, como acertadamente afirma Ricard Rorty é a vergonha; vergonha entendida como um reconhecimento dos factos, das atitudes e das actuações que integram uma tradição política específica, o que supõe trazer à luz episódios negativos e moralmente controversos ou rejeitáveis64. Admitir a identificação ou a pertença a uma tradição política deveria implicar o conhecimento desses factos, dessas atitudes e dessas actuações, a sua assunção e o compromisso firme de não repetição. O orgulho e a vergonha são indisociáveis neste campo65. Só desta maneira o debate sobre as trajectórias políticas emerge clarificado, escapando ao círculo vicioso que traçam as acusações recíprocas ou a procura do ataque primogénito. Talvez fosse um modo de aproximação ao passado sem se cair em debates estéreis que monopolizam a esfera pública, abrindo-se esta, por acréscimo, a outras questões também relevantes para a cidadania e amiúde obscurecidas pela simplificada discusão acerca do passado.

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Notas

1 Projecto de investigação pós-doutoral intitulado O homem civilizado em Espanha e Portugal: modelos de comportamento e afectividade nas ditaduras franquista e salazarista, financiado pela FCT (SFRH/BPD/26210/2006) que actualmente estou a desenvolver no Instituto de História Contemporânea – UNL, sob a orientação do Prof. Doutor António Reis. Agradeço à Sónia Apolinário a sua inestimável e atenta ajuda na correção do português.

2 Lucien Febvre, Combates por la historia. Barcelona, Ariel, 1970.

3 Para um estudo pormenorizado dos dados e argumentos aportados pelos autores identificados com a historiografia oficial do franquismo; v. A.Reig Tapia, Ideología e Historia. Sobre la represión franquista y la Guerra Civil, Madrid, Akal, 1986.

4 Um destes aspectos é o referido ao número de vítimas da repressão durante a guerra e o pós-guerra. Para uma aproximação à questão que salienta as deficiências metodológicas da contabilidade franquista, v. Reig Tapia, Ideologia e Historia…, pp. 91-121. Os valores que são considerados pelos especialistas podem consultar-se em F. Moreno, «La represión en la posguerra», in S. Juliá (dir.), Víctimas de la Guerra Civil, Madrid, Temas de Hoy, 1999, assim como no dossier intitulado Represión, la tragedia oculta publicado pela revista de divulgação histórica La Aventura de la Historia, 3, Janeiro, 1999.

5 «El nuevo régimen [la II República], precisamente, al suscitar un intenso sentimiento de esperanza en soluciones drásticas, pero irreales, provocó decepción y envenenó los problemas año tras año, hasta no dejar otra salida que las armas»; cfr. P. Moa, Los orígenes de la Guerra Civil española, Madrid, Encuentro, 1999, p. 18.

6 «Este libro [Los orígenes de la Guerra Civil] trata del movimiento insurreccional de octubre de 1934 y de sus consecuencias. Su tesis básica es que dicha insurrección constituye, literal y rigurosamente, el comienzo de la guerra civil española y no un episodio distinto o un simple precedente de ella. Por tanto, en julio de 1936, sólo se habría reanudado la lucha emprendida 21 meses antes»; cfr. P. Moa, Los orígenes de la Guerra Civil…, p. 9.

7 «La historiografía deberá reconocer que aquel régimen [el Franquismo], con todas sus faltas e incluso crímenes, salvó ciertamente a España de la revolución, y luego de la guerra mundial, y desarrolló el país y la sociedad desde casi todos los puntos de vista; cfr. P. Moa, «De un tiempo de un país». La izquierda violenta (1968-1978), Madrid, Encuentro, 2002, p. 341.

8 «La derecha procedente del franquismo, que no la oposición antifranquista, organizó la transición democrática, lo cual quiere decir que fue posible evolucionar con normalidad desde una dictadura autoritaria a un régimen de libertades; cfr. P. Moa, Falacias de la izquierda, silencios de la derecha, Madrid, Libros Libres, 2008, p. 12.

9 «[Durante a II República] esta condición [moderação e respeito pela lei] (…) se daba de forma predominante en la derecha, aglutinada en la CEDA, mientras que sólo existía en sectores muy minoritarios de la izquierda, como el de Besteiro dentro del PSOE. Dicho de otro modo: en la izquierda predominaba la tendencia revolucionaria, y en la derecha la legalista»; cfr. P. Moa, 1936. El asalto final a la República, Barcelona, Áltera, 2005, p. 16.

10 P. Aguilar Fernández, Políticas de la memoria y memorias de la política, Madrid, Alianza, 2008, pp. 118-121.

11 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía: no fue posible el acuerdo», in S. Juliá (dir.), Memoria de la guerra y del franquismo, Madrid, Taurus / Fundación Pablo Iglesias, 2006, pp. 102-105; P. Aguilar Fernández, Políticas de la memoria…, pp. 212-213.

12 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía…», p. 106; P. Aguilar Fernández, Políticas de la memoria…, pp. 215-216.

13 M. Pérez Ledesma, «La Guerra Civil y la historiografía…», pp. 112-113.

14 Moa é certamente um autor prolífico: nos registos da Agência Espanhola do ISBN figuram pelo menos 18 títulos da sua autoria ou direcção publicados entre 1999 e 2009. A editorial La Esfera de los Libros proporciona os seguintes dados relativos às edições e ao volume de vendas: Los Mitos de la Guerra Civil conta hoje com 36 reimpressões e mais de 250.000 exemplares vendidos e Los crímenes de la Guerra Civil vai, actualmente, pela sua sexta edição. A agência de notícias Europa Press, em 5 de Outubro de 2004, falava em 150.000 exemplares vendidos de Los Mitos de la Guerra Civil assim como na permanência deste livro no primeiro lugar da lista dos títulos de não-ficção mais vendidos durante seis meses consecutivos. O autor também possui um blog pessoal vinculado ao jornal on-line Libertad Digital (http://blogs.libertaddigital.com/presente-y-pasado/) com um significativo grau de participação por parte dos leitores.

15 S. Balfour, «The concept of historical revisionism: Spain since the 1930s», International Journal of Iberian Studies, 21-3, 2008, pp. 179-186; J. Gracia, «Revisionism, a necessary evil», International Journal of Iberian Studies, 21-3, 2008, pp. 247-262.

16 A. Elorza, «Vuelve el 36», El País, 17/9/2005, p. 21. Uma outra denominação, proposta ironicamente por Reig Tapia (Ideología e Historia…), é a de «historietógrafo» jogando, em espanhol, com o sentido das palavras «historia» e «historieta», termo relativo a contos ou a relatos de ficção e, numa acepção mais coloquial, à explicação manifestamente falsa e inventada de um facto ou de um acontecimento com a intenção de convencer ou enganar o nosso interlocutor.

17 S. Gálvez, «Memorias, historia, derechos humanos, políticas públicas: reflexiones en torno a la práctica historiográfica. Conclusiones», Hispania Nova. Revista de Historia Contemporánea, 8. 2008; http://hispanianova.rediris.es/8/articulos/8a004.pdf Consulta: 5/11/08.

18 «Los dos libros anteriores [Los orígenes de la Guerra Civil e Los personajes de la República vistos por ellos mismos], (…) plantean una revisión a fondo de las versiones sobre nuestro pasado reciente más difundidas y por ello debieran haber dado lugar a un cierto debate. Pero (…) no ha sido así, pues los discrepantes han preferido el silencio, acompañado de rumores y ataques no públicos»; cfr. P. Moa, El derrumbe de la Segunda República y la Guerra Civil, Madrid, Encuentro, 2001, p. 16.

19 Numa entrevista no jornal El Mundo (9/04/2003), Pío Moa é inquirido sobre os historiadores que o apoiam: «Me han apoyado explícitamente historiadores como Stanley Payne, Seco Serrano, César Vidal y otros. Algunos me han transmitido su apoyo pero hay un cierto temor a hacerlo público debido al predominio de la izquierda en la universidad».

20 Embora o debate não tenha apresentado um formato público formal, é preciso reconhecer que têm existido, fundamentalmente, através de publicações digitais, confrontos diversos e trocas de pareceres entre as teses revisionistas e as defendidas por historiadores profissionais. A este respeito, sirva como exemplo de debate o mantido entre o historiador Enrique Moradiellos e o revisionista Pío Moa juntamente com outros intervenientes na revista digital El Catoblepas ao longo de 2003 e 2004 (números 15, 16, 17, 19, 22, 23 e 24. www.nodulo.org/ec/).

21 Um exemplo deste tipo de crítica é F. Espinosa, El fenómeno revisionista o los fantasmas de la derecha española, Badajoz, Del Oeste Ediciones, 2005. Um outro estudo nesta linha, embora misturando desigualmente a crítica historiográfica, a análise política e a sorna intelectual, é Reig Tapia, Anti-Moa, Barcelona, Ediciones B, 2006.

22 O conceito equilíbrio de poder refere-se às específicas condições de interdependência que existem entre os indivíduos e os grupos que fazem parte de uma dada sociedade. Cfr. N. Elias, Sociología Fundamental. Barcelona, Gedisa, 1999, pp. 100-107.

23 J. Muñoz, «Sin complejos: las nuevas derechas españolas y sus intelectuales», Historia y Política, 18, 2007, pp. 129-164.

24 As seguintes palavras de Pío Moa resumem esta ideia: «Así, tan pronto las izquierdas perdieron el poder en 1996, hicieron del ambiente social previamente creado en torno a la República y la guerra un arma para acorralar a las derechas: en definitiva, éstas eran las herederas de aquellos fascistas que habían destruido la maravillosa República y asesinado a tantos de sus preclaros defensores (…) Ese relato de la derecha permitió que, en ocasiones como la marea negra del ‘Prestige’ y sobre todo la guerra para derrocar a Sadam Hussein, calara fácilmente entre millones de personas la propaganda izquierdista y separatista que pintaba al gobierno de Aznar como despreciativo de los intereses del ‘pueblo’, belicista, pro imperialista y ‘asesino’»; cfr. P. Moa, 1936. El asalto fina …, p. 186.

25 Sirvam como exemplo estas afirmações de Pío Moa: «No existe hoy ningún partido de izquierda que apoye o respete la democracia liberal»; cfr.P. Moa, Falacias de la izquierda…, p. 20.

26 A ligação entre o passado e o presente permite identificar a potencial ameaça da esquerda sobre a sociedade. De novo, as palavras de Pío Moa podem ilustrar tal circunstância: «En dos palabras, asistimos a la reedición de la vieja alianza entre las izquierdas, los separatismos y el terrorismo; cfr. P. Moa, 1936. El asalto final a la República…, p. 188.

27 De acordo com S. Giner, E. Lamo de Espinosa e C. Torres (eds.), Diccionario de Sociología, Madrid, Alianza, 1998, entendo por cultura política o contexto de significados no qual se desenvolve a vida política de uma dada comunidade. Este contexto concretiza-se nos discursos, nas linguagens, nas normas ou nos ritos que têm lugar na esfera pública assim como nos diferentes recursos culturais disponíveis para a actuação política. Para uma síntese sobre os estudos de cultura política em Espanha. V. M. L. Móran, «Los estudios de cultura política en España», Revista española de investigaciones sociológicas (REIS), 85, 1999, pp. 97-129.

28 A este respeito, resulta imprescindível a consulta de P. C. González Cuevas, Historia de las derechas españolas. De la Ilustración a nuestros días, Madrid, Biblioteca Nueva, 2000 e El pensamiento político de la derecha española en el siglo XX. De la crisis de la Restauración al Estado de los partidos (1898-2000), Madrid, Tecnos, 2005.

29 Uma enumeração mais sistemática assim como uma classificação segundo variantes ideológicas pode consultar-se em J. Muñoz,«Sin complejos: las nuevas derechas españolas…», pp. 152-160.

30 E.Rodrígues e H. Arbide, «¿Nueva derecha? O la reivención del populismo frente al vacío de la izquierda», Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, 72, 2006.

31 O Grupo de Estudios Estratégicos sintetiza esta visão no seu artigo «La receta neocon», Libertad Digital, 2/10/2008. O GEES é um think-tank criado em 1986, formalmente independente, embora ideologicamente vinculado ao PP.

32 Podemos encontrar um exemplo desta crítica num novo artigo do GEES entitulado «La sociedad contra sí misma», Libertad Digital, 6/03/2009, à volta da reforma proposta pelo PSOE sobre a lei do aborto: «El proyecto del gobierno de subvertir los valores cívicos y morales de España es tan real que el experimento marcha imparablemente [...] El gobierno y la izquierda postmoderna buscan hacer tábula rasa con el pasado, la tradición y la cultura occidental».

33 Pío Moa, agora na sua vertente de comentador político, estabelece essa relação através do conceito de conspiração: «El golpista Zapo [José Luis Rodríguez Zapatero] ha vuelto a explotar la guerra de Irak para desviar la atención de sus chanchullos con los terroristas y de la conspiración del 11-M. Pues claro que hubo conspiración, la hay detrás de todo atentado. El lenguaje pervertido de los liberticidas pretende estigmatizar con esa palabra a quienes buscan la verdad. La cuestión radica en saber quiénes conspiraban y en qué grado. Y varios indicios apuntan al propio PSOE, gran beneficiario y premiado de la matanza»; Pío Moa, «Conspiración y golpismo», Libertad Digital, 22/10/2006.

34 Angel Acebes, ex-ministro da Administração Interna e Secretário Geral do PP, afirmava, segundo o jornal El País (5/06/2006), após uma reunião do Comité de Direcção do PP: «El proyecto de Zapatero es el proyecto de ETA».

35 José Maria Aznar, primeiro-ministro entre 1996 e 2004, afirmava, segundo El País (7/10/2005), por ocasião da sua intervenção no Fórum Mundial da Negociação celebrado no México, que José Luis Zapatero tinha levado a Espanha, em pouco menos de um ano, «al borde del abismo» e que o país corria, quer o risco «de desintegración y de balcanización», quer o risco «de volver a las andadas». É interessante esta última expressão, «volver a las andadas», talvez desconhecida para o leitor português, que remete para a ideia de reincidir nos erros do passado e que aqui bem pode funcionar como referência implícita aos tempos mais convulsos e conflituosos da história recente de Espanha.

36 O porta-voz de Educação do PP no Congreso dos Deputados, Eugenio Nasarre, afirmava que a disciplina Educação para a Cidadania, que o governo pensava introduzir no ensino secundário possuía «un grave riesgo de adoctrinamiento». ABC, 8/6/2006.

37 Federico Jiménez Losantos qualificava a vitória do PSOE em 2000 como «golpe de Estado político-mediático». Citado em J. Muñoz, «Sin complejos…», p. 152.

38 No jornal Libertad Digital, José Luis Restán expressava-se assim: «Días de furia. Vuelan los insultos contra los obispos y saltan las amenazas, del chascarrillo a la impostada solemnidad […] Desde todos los rincones se entona una especie de ‘¡No Pasarán!’ con sabor a trinchera muy antigua, casi olvidada […] El PSOE concluye la legislatura con un estrambote que resume perfectamente su política de los últimos cuatro años: la ruptura y la exclusión. José Luis Restán, «Cruzada del PSOE contra los obispos. Lo que Zapatero no puede impedir», Libertad Digital (Suplementos: Iglesia), 6/2/2008.

39 Aznar, segundo El Periódico (6/5/2007), acusava Zapatero, propósito da proposta socialista sobre a Lei da Memória Histórica, de «obsesión con la revancha» e de «remover tumbas».

40 Ideia apontada em J. Izquierdo Martín e P. Sánchez León, La guerra que nos han contado.1936 y nosotros, Madrid, Alianza, 2006, p. 120.

41 S. Juliá, «Los cambios estructurales de la sociedad en la etapa final de las dictaduras. El caso español», in H. de la Torre (coord.), Portugal y España en el cambio político (1958-1975), Mérida, UNED, Centro Regional de Extremadura1989; «Obreros y sacerdotes: cultura democrática y movimientos sociales de oposición», in j. Tusell, A. Alted e A. Mateos (coords.), La oposición al Régimen de Franco, vol. 2, Madrid, UNED, 1990; Un siglo de España. Política y Sociedad, Madrid/Barcelona, Marcial Pons, 1999; «Cambio social y cultura política en la transición a la democracia», in J. C. Mainer e S. Juliá, El aprendizaje de la libertad, Madrid, Alianza, 2000. J. M. Maravall, La política de la transición, Madrid, Taurus, 1985.

42 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia de los medios de comunicación e la formación y características de la cultura política de los españoles», Revista Española de Investigaciones Sociológicas (REIS), 57, 1992, pp. 37-59.

43 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra y del franquismo en la política, la cultura y la sociedad españolas», in S. Juliá (dir.), Memoria de la guerra y del franquismo, Madrid, Taurus / Fundación Pablo Iglesias, 2006, p. 300.

44 Idem, ibidem.

45 Idem, p. 301.

46 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia…», pp. 44-45.

47 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra…», p. 301.

48 M. L. Morán, «Algunas reflexiones en torno a la influencia…», p. 45.

49 Para uma aproximação a estas questões: A. Pérez Agote, La sociedad y lo social. Ensayos de sociología, Bilbao, Servicio Editorial de la Universidad del País Vasco, 1989, especialmente o capítulo 4, e o clássico R. K. Merton, Teoría y estructura sociales, México, FCE, 1964, pp. 505-520.

50 Pío Moa traça no seguinte fragmento um quadro histórico que liga a ditadura, como base do actual sistema político, com democracia, a qual corre o risco de ser subvertida pelo governo do PSOE: «Sobre la base de una sociedad reconciliada y próspera que legó la dictadura de Franco, sobre una alternativa de reforma y no de ruptura con 40 años de paz productiva, aun con restricciones a las libertades políticas […] se produjo en España la transición democrática. Pues bien, ¿cómo ha sido posible que en los últimos 4 años se hayan invertido todas las bases de la convivencia en libertad implantadas en los años 1975-1978 para entrar en una etapa de alianza entre el PSOE, los terroristas y los separatistas, de acoso a las víctimas del terrorismo, a la Constitución, a la Iglesia, a la libertad de expresión? ¿Cómo ha sido posible poner en riesgo por enésima vez en la historia de España los beneficios alcanzados a tanto coste?»; cfr. P. Moa Falacias de la izquierda…, p. 12.

51 Antes da promulgação da lei teve lugar uma manifestação em Madrid convocada pelo Fórum da Família, com a presença destacada de dirigentes do PP, assim como do Arcebispo de Madrid e do Vice-Presidente da Conferência Episcopal espanhola, entre outros, que solicitaram a retirada da lei. A jornalista Cristina López Schlichting leu um comunicado final no qual qualificava o casamento homossexual de «atentado» contra a instituição familiar (El Mundo, 20/6/2005).

52 Palavras do Arcebispo de Valência, Cardeal García Gasco (El Mundo, 2/1/2008, no Encontro Das Famílias, em Madrid, a 30 de Dezembro de 2007: «La cultura del laicismo es un fraude y un engaño, no construye nada, sólo desesperanza por el camino del aborto, del divorcio ‘express’ y de una ideología que quiere manipular a los jóvenes […] Por ese camino no se respeta la Constitución de 1978, por ese camino nos dirigimos a la disolución de la democracia».

53 Mais uma manifestação neste sentido. Trata-se de Agapito Maestre no Libertad Digital (3/7/2007): «Zapatero ha vuelto a engañar a los españoles. Ha ganado en el Congreso de los Diputados. Ha vendido la patria y la oposición ha tragado».

54 Moa reitera a ideia da traição vinculada à gestão do PSOE: «El gobierno socialista emprendió su carrera traicionando el Pacto por las Libertades y contra el Terrorismo para pactar con los separatistas y los terroristas y aislar a la derecha». P. Moa, Falacias de la izquierda…, p. 29.

55 P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra y del franquismo…», p. 283.

56 Idem, p. 305.

57 Já nos primeiros meses de 1979 existiram recordações do passado franquista dos membros do governo ou evocações sobre o marxismo que ameaçavam destruir a sociedade espanhola. Cfr, S. Juliá, «Memoria, historia y política de un pasado de guerra y dictadura», in S. Juliá (dir.), Memoria de la guerra y del franquismo, Madrid, Taurus / Fundación Pablo Iglesias, 2006, p. 57.

58 S. Juliá, «Los cambios estructurales de la sociedad en la etapa final de las dictaduras. El caso español», in H. de la Torre (coord.), Portugal y España en el Cambio político (1958-1975), Mérida, UNED, Centro Regional de Extremadura 1994, pp. 183-185.

59 Esperanza Aguirre, Presidente da Comunidade Autónoma de Madrid e dirigente destacada do PP, afirma em entrevista ao El Mundo (23/8/2006): «[...] cuando se redactó la constitución todos tenían muy presente que no debía volver a repetirse la tragedia de la Segunda República, que ahora el señor Zapatero tiene como modelo». De novo Aguirre, agora em intervenção no Foro Madrid (El País, 19/11/2008) afirmava que nas sedes do PSOE havia retratos de figuras políticas da II República enquanto nas do PP não existiam retratos de Franco, justificando: «porque el PSOE sí tiene un pasado violento y eso hay que decirlo con claridad».

60 O primeiro-ministro Zapatero referiu-se à II República como uma época de «sonhos e lágrimas» e à Constituição republicana de 1931 como um texto que «ilumina» a actual Constituição, vigente desde 1978. Não se declarando formalmente herdeiro daquele período, afirmou que «la España de hoy mira a la 2ª República con reconocimiento, pero, sobre todo, con satisfacción y orgullo por ver lo que hemos podido hacer entre todos en esta etapa constitucional» (ABC, 6/4/2006).

61 A. Reig Tapia, Anti-Moa..., pp. 370-375.

62 Resulta exemplar o livro de J. Izquierdo Martín e P. Sánchez León, La guerra que nos han contado…, como via de acesso ao passado histórico, analisando a proximidade ou o afastamento, em termos de mentalidade, entre os espanhóis de 1936 e os espanhóis de hoje. Essas mentalidades, traduzidas na linguagem utilizada e diferentes significados atribuídos às palavras, revelariam a radical alteridade entre os espanhóis dos anos 30 e os actuais. Embora estas conclusões possam ser discutíveis, elas representam uma geração de historiadores desligada já, em termos de experiência vital, do franquismo.

63 Esta dicotomia identificação-des-identificação é analisada por Norbert Elias tomando como referência as dinâmicas de interacção entre grupos sociais estabelecidos (established) e marginais (outsiders). Cfr.Norbert Elias, The Established and the Outsiders, Londres, Sage, 1994; «Ensayo acerca de las relaciones entre establecidos y forasteros», Revista Española de Investigaciones Sociológicas (REIS), 104, 2003, pp. 219-251.

64 Richard Rorty, Achieving our Country: Leftish Thought in Twentieth-century America, Harvard University Press, 1998, pp. 3-11.

65 As palavras de Paloma Aguilar são uma boa prova: «[…] el acuerdo de no instrumentalización del pasado político sigue manteniendo su vigencia en nuestros días, básicamente porque tanto la derecha como la izquierda tienen de qué avergonzarse si fijan su atención en dicho periodo [período referido à transição à democracia]». Cfr. P. Aguilar Fernández, «La evocación de la guerra y del franquismo…», p. 304.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Fernando Ampudia de Haro, «Uma aproximação ao revisionismo em Espanha: o fenómeno Pío Moa»Ler História, 58 | 2010, 203-224.

Referência eletrónica

Fernando Ampudia de Haro, «Uma aproximação ao revisionismo em Espanha: o fenómeno Pío Moa»Ler História [Online], 58 | 2010, posto online no dia 08 dezembro 2015, consultado no dia 29 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/1247; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.1247

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Autor

Fernando Ampudia de Haro

Instituto de História Contemporânea – UNL

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